Aqui fica um texto com que contribui recentemente para um trabalho partidário. Uma tentativa de "mediação ideológica". Disclaimer, apesar do que escrevi: não sou, nunca vou ser liberal. Só que isso não implica desprezo: as soluções políticas fazem-se do contributo estratégico de todas as ideologias e da escolha de uma para traçar o caminho.
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O PSD e o liberalismo
Uma nota histórica – o liberalismo
Inicia-se este capítulo com uma reflexão conceptual sobre o liberalismo e a sua emergência histórica. Importa demarcar as fronteiras desta ideologia, sem desmerecer a sua diversidade de propostas. Não menos importante é a percepção de quais os factores de sucesso para a afirmação do liberalismo nas sociedades e nas estruturas partidárias.
Impõe-se uma resposta prévia à primeira pergunta. O liberalismo tem raízes económicas e políticas, concorrentes mas distintas, desde a sua primeira afirmação entre as elites governativas, nos séculos dezoito e dezanove. A raiz económica está fortemente alicerçada na escola clássica do pensamento económico.
As proposições de Smith e Ricardo eram amplamente favoráveis à desregulação do mercado, destacando-se a eficiência promovida pelas trocas comerciais. A política orçamental óptima era tida como proporcionadora da infra-estrutura necessária à existência de trocas comerciais e à apropriação do valor criado pela produção.
A ineficiência era vista como uma consequência inevitável do que mais pudesse ser financiado pela receita fiscal. À época, era predominantemente a despesa militar expansiva e a protecção às elites aristocráticas que motivava a noção da perda de bem-estar decorrente das transacções suprimidas pela carga fiscal.
A escola utilitária do pensamento económico reforçou esta convicção. Inicialmente, esta era suportada por uma estrutura determinística da procura (de consumo e investimento), invariante em relação aos preços – o mesmo quadro teórico em que Marx desenvolveria a Teoria do Valor do Trabalho. A nova teoria dissociava os preços do custo marginal de produzir uma quantidade pré-fixada, criando mecanismos de mercado e novas análises de bem-estar.
Todavia, este novo quadro teórico limitou-se a reforçar o argumento contra e excessiva regulação e intervenção pública, ao possibilitar a quantificação de um “excesso de carga” tributário – a perda de bem-estar líquida da sociedade proveniente de um imposto, sendo as receitas fiscais excedidas pelas perdas de bem-estar dos agentes privados.
Não existia, concomitantemente, um mecanismo quantitativo que comprovasse os benefícios da despesa pública. Ainda que o liberalismo nunca tenha sido uma ideologia anárquica, os discrepantes graus de cientificidade na análise da receita e da despesa pública influenciaram perenemente o paradigma científico liberal e toda uma perspectiva política da época, a reticência face aos não comprovados benefício as políticas de regulação e intervenção.
A primeira grande crítica económica à escola liberal terá porventura sido, sintomaticamente, a escola burocrática da “economia política alemã”. Esta alicerçava o conhecimento económico no de administração pública. Embora deva ser sublinhado que a condução dos “negócios públicos” prefazia à época quase todo o objecto da ciência económica, esta escola advogava uma lógica de jus imperii que se opunha ao liberalismo, um certo pressuposto de que os agentes públicos poderiam desenvolver mais eficientemente muitas das actividades económicas em virtude do seu poder de intervenção sobre os cidadão e da flexibilidade que este lhe conferia.
Só muito mais tarde, nos últimos 40 anos, veio o paradigma neoclássico a enquadrar a intervenção pública ao mesmo nível da teoria das decisões óptimas de produção e consumo e do bem-estar. Só nesse período veio a atender à correcção de falhas de mercado (como externalidade e bens públicos) e a outras restrições colocadas na optimização dos negócios públicos, como a corrupção. Por isso, por muitas décadas, este antagonismo reforçou-se e moldou até o espectro partidário de muitos países.
Com efeito, embora esta génese económica tenha fortes implicações políticas, é necessário olhar a outros contributos da actividade política pura.
O paradigma liberal foi, num primeiro momento, a arma política de combate ao poder monárquico absoluto. A eficácia desta combate decorria de diversos factores. Desde logo, a organização política do Antigo Regime tendia a exponenciar a dimensão do Estado, gerando despesa pública não produtiva.
Em geral, fomentava actividades económicas não transaccionáveis, ao sustentar a elite aristocrática numa gestão ineficiente da actividade agrícola, só possível pela subsidiação e pelas restrições legais à concorrência por burgueses e camponeses. A isto acrescia o peso excessivo das despesas militares, outra actividade económica que criava valor para a aristocracia.
Ao mesmo tempo, a alternativa liberal promovia activamente os interesses da burguesia, que se via impedida de estender a sua superioridade cultural e empreendedora a outros sectores que não os sujeitos a concorrência, porque desregulados pelo Estado – tipicamente o comércio internacional e alguma parte do sector manufactureiro.
Assim, definiu-se toda uma agenda política de desregulação, assente na eleição dos titulares do Estado pela elite económica (através do sufrágio censitário), na supressão de privilégio hereditários como o morgadio e da inerência vitalícia de certos contractos, na extinção de subsídios, na reforma administrativa local, na remoção de taxas e portagens locais, na abertura ao comércio internacional de bens manufacturados, na equiparação dos direitos de propriedade, na constituição legal de mercados livres e razoavelmente líquidos para a propriedade física e os principais bens económicos. Tudo isto exigia um sistema jurídico razoavelmente homogéneo, oposto a esquemas casuísticos e com diferenciação pela condição de nascimento.
Todo este detalhe na descrição desta agenda deve-se ao facto de este ser talvez o único período em que observamos agendas políticas de governo consistentemente liberais em algumas das maiores economias do mundo – e na maioria dos países. A agenda liberal contestava quase todas as políticas assistencialistas, vistas como cúmplices das antigas ordens privilegiadas.
No puro processo de feitura da política, destaca-se o longo conflito social vivido entre a “direita” radical deste período e os movimentos “liberais”. Mas antes ainda da completa afirmação destes últimos, uma certa cisão entre movimentos políticos mais burocráticos (ainda que liberais quanto à reforma do Antigo Regime) e movimentos mais “progressistas” (a esquerda desse período) emergiu. Em Portugal, definiu o rotativismo partidário ao longo de todo o século XIX e ainda a concorrência do Partido Democrático (mais tarde, do Partido Nacionalista e do Partido Liberal) contra o Partido Evolucionista e os seus sucessores.
Aspectos particulares desta materialização no nosso país foram a política “fontista”, mais conservadora e burocrática, de investimento público em infra-estrutura, que conduziu Portugal à crise de 1892, assim como as disputas sobre o livre comércio (abandonado a partir de 1892) e a presença de Portugal no sistema monetário do padrão-ouro, assim como, ainda, as violentas reformas democráticas da Primeira República, de teor liberal e a violenta controvérsia em torno da subida ao poder do Partido Liberal, que terminou na Noite Sangrenta.
Como se evidenciou, a política liberal teve um período de vigência, que seguidamente se esgotou. Este assentou em condições de afirmação específicas, tais como o carácter radicalmente anti-liberal do Antigo Regime e o interesse de afirmação da burguesia, à época sem rivalidade, sendo a restante população politicamente inactiva e economicamente menorizada. O esgotamento destas condições, com o esquecimento geracional do Antigo Regime e o progresso económico e cultural paulatino das classes desfavorecidas, levou à decadência do período político liberal.
Uma segunda nota histórica – a social-democracia na contestação do liberalismo
Deve evidenciar-se o papel da afirmação da social-democracia na transformação profunda do espectro político das actuais democracias ocidentais, no que se inclui Portugal. Sendo esta a matriz fundadora do nosso partido, importa compreender em que sentido foi esta oposta ao paradigma liberal, ou quais as condições históricas, específicas e porventura irrepetíveis, que criaram esse antagonismo.
A emergência da social-democracia teve alguns antecedentes na Europa do Norte; porém, foi sobretudo um fenómeno da Primeira Guerra Mundial, que se reforçou em popularidade e elegibilidade para o Governo no período entre guerras. Uma circunstância particular favoreceu a transformação dos tradicionais partidos socialistas (futuros partidos bolcheviques) em partidos que, preservando os ideais do socialismo, admitissem a economia de mercado: a necessidade de constituir governos de salvação nacional durante a Grande Guerra.
Este facto possibilitou a muitos partidos “socialistas” ou “social-democratas” que integraram esses governos uma oportunidade única para evidenciarem a sua cisão com os socialistas da esquerda radical e para se mostrarem uma alternativa de governo credível.
Com algumas excepções (como o “Labour” inglês), pode-se afirmar que este processo teria sido muito diferente sem a guerra. Em contextos particularmente difíceis de profunda emergência social, estes partidos mostraram que poderia existir um outro assistencialismo que não o conservador e que virar à esquerda desse conservadorismo não implicava ser liberal e perder muita da presença do Estado e o desempenho de algumas funções sociais – antes pelo contrário, poder-se-iam reforçar esses desígnios com um governo da “esquerda” do século XX.
Esta convicção acabou por substituir os liberais pelos sociais-democratas como força de concorrência política mais relevante aos partidos conservadores. Este últimos progrediam entretanto rumo a linhas mais modernas, obedecendo a um princípio central da sua ideologia, o de evoluir paulatinamente, como um organismo natural evolui, vindo a originar os actuais partidos conservadores e democratas.
Os partidos sociais-democratas mantiveram-se, na sua maioria, fiéis à linha de orientação defendida por Bernstein e à cisão operada na Internacional Socialista durante a I Guerra Mundial (de onde proveio a III Internacional). Houve algumas excepções, como as Frentes Populares francesa e espanhola. No entanto, a atracção e a consumação do poder preveniram a defesa de projectos políticos muito arrojados na linha do socialismo.
Em Portugal este fenómeno foi consumado de forma atípica, devido ao golpe de 28 de Maio. Nos anos após a Grande Guerra, em que o governo português de salvação nacional não incluiu a esquerda, surgiram organizações como o PCP, novos núcleos anarquistas e o partido da Esquerda Democrática. Enquanto no espectro político liberal se sucediam as alterações, com a crise do Partido Democrático, estas tendências ganharam peso, a ponto de ter existido um primeiro governo da Esquerda Democrática. Num contexto fértil em formações de executivos, esta subida ao poder foi possível nos anos 20.
O que mais sobressai neste período é a decadência do paradigma político liberal, com maus resultados das políticas governativas e divisões internas. A criação do Estado Novo consumou este processo de forma pouco usual. Instituiu um regime autoritário conservador e nada liberal, que esvaziou ao longo de décadas a tradição liberal da política portuguesa; a oposição que desde sedo se assumiu dividia-se entre um republicanismo cada vez mais social-democrata e (sobretudo) um socialismo pró-soviético.
Potenciais traços liberais na história do PSD
Visto o enquadramento da questão ideológica do liberalismo, impõe-se a pergunta: que pôde o PSD, partido assumidamente social-democrata, conter de liberal na sua matriz ideológica, observando-se a prática política de quase quatro décadas?
Mais a mais, sobrevém o “preconceito” ideológico de esquerda instalado na sociedade portuguesa após o golpe revolucionário de 25 de Abril e a ausência de propostas políticas liberais nas décadas anteriores, que mantiveram o liberalismo fora do espectro partidário, quando o conservadorismo, ainda assim, resistiu ao constituir o CDS e influenciar o PSD.
Colocada a questão, importa percorrer a história do partido, à procura de inesperados elementos liberais. Uma primeira discussão se poderia estabelecer sobre o personalismo, característica inscrita na matriz ideológica fundadora do partido e inspirada (sobretudo) na social-democracia sueca.
Não sendo eminentemente liberal, antes conservador, o personalismo é uma marca do respeito pela individualidade e pela pulsão natural do desenvolvimento das sociedades, fundado no alinhamento da dignidade de cada indivíduo com os desígnios colectivos, antes espontâneos que totalitários. Assim, o PSD pode ser visto ex ante como um partido social-democrata de sensibilidade conservadora, por que se distinguiria do PS, mais que como um partido social-democrata de sensibilidade liberal.
Outras discussões resultam, sobretudo, da prática política concreta. Sem se ser exaustivo, procura-se relevar algumas das marcas históricas que mais a podem suscitar. O primeiro destaque vai para o posicionamento do partido ao longo da primeira legislatura democrática. Este período, caracterizado pela controvérsia interna, culminou na ascensão de um paradigma político distinto do que emergira ao longo do PREC.
Nesse primeiro momento, a inspiração personalista do PSD foi frequentemente ofuscada por um posicionamento puramente social-democrata que, estrategicamente, servia a oposição ao paradigma leninista e à social-democracia mais conivente com o programa económico socialista, representada pelo PS.
O abandono do poder executivo por parte do PCP, que se revelaria definitivo, normalizou o espectro político português, obrigando o PSD a assumir a especificidade da sua social-democracia para distinguir do PS. Este processo viria a ser turbulento, já que grande parte dos quadros que haviam sustentado o partido no período revolucionário se identificavam com uma social-democracia muito próxima à de um típico partido da Internacional Socialista.
A questão do liberalismo coloca-se em qualificar a proposta política Sá-Carneirista resultante deste processo e matriz política que o PSD colocou, da sua parte, na Aliança Democrática. Não pode aqui desmerecer-se a mensagem política mais premente que terá convencido os eleitores, superando o “preconceito de esquerda” que regera anteriores eleições (sem prejuízo do bom resultado conjunto de PSD e CDS em 1976, quando o posicionamento do PSD era distinto).
Uma interpretação possível dos fenómenos eleitorais de 1979 e 1980 é a de que a AD se mostrou capaz de ”libertar” o país de uma imparável estatização da vida social, que destroçara os seus mecanismos espontâneos de funcionamento e fomentara situações políticas e económicas de grande turbulência.
Ainda que a entrada do FMI tivesse coincidido com a aplicação de remédios adequados aos desequilíbrios do país, a impopularidade dos sacrifícios exigidos, a par dos erros políticos que as correcções revelaram, fizeram crescer a ideia de que o país precisava de “trabalhar” e de se organizar sem bases obssessivamente ideológicas que já o tinham conduzido a diversas crises.
Podemos identificar uma expectativa política liberal enquanto suporte desta afirmação. É esta uma expectativa de desregulação de algumas das protecções, dos privilégios, das restrições e dos racionamentos impostos pela Revolução, que, burocraticamente e com o um suporte de jus imperii , tinham transformado a vida social segundo uma ideologia. As semelhanças com a desregulação de um Antigo Regime são claras, pois este era igualmente um modelo burocrático e ideológico de sociedade. Até mesmo o propósito constitucional da AD se enquadra na simbiose política económica do antigo liberalismo.
No entanto, a afirmação de que a AD era liberal não se pode confundir com a constatação de uma expectativa liberal por parte dos seus eleitores. Sendo certo que a prática política enveredou neste sentido, não se pode esquecer que os governos da Aliança Democrática desenvolveram uma política orçamental expansionista e uma política de investimento que gerou excesso de capacidade na economia, só aproveitada a partir do choque de 1985. Nem mesmo o posicionamento político ao centro da AD, com independentes da esquerda, com o PPM e um PSD muito equidistante do espaço político, nos podem levar a concluir que houve uma orientação premeditadamente liberal.
Essencialmente, o partido foi coerente com os seus propósitos conservadores de progresso económico e social. Era acima de tudo a dimensão personalista da democracia que era violentada pelas políticas económicas, cambiais e laborais, muito mais que um desejado mercado de regulação mínima. Terá sido acima de tudo uma contigência histórica a conferir um “élan” liberal ao projecto da AD. Não foi esta reconhecida como tal nessa época, em que o liberalismo estava banido do léxico político admitido.
Hoje é possível constatar que existiu, e que foi um “élan” provisório. O projecto político resistiu por pouco tempo, por razões diversas, e o Bloco Central voltou a relevar a dimensão social-democrata do partido, envolvendo até propostas políticas semelhantes às de 77, e porventura pertinentes como as de 77 o haviam sido, mais por uma urgência que por uma orientação ideológica a longo termo.
O impacto desta segunda intervenção externa culminou, politicamente, nas eleições de 1985. Aqui ocorreu a génese do segundo de dois grandes projectos políticos de governo da história do PSD.
E, curiosamente, verifica-se que as expectativas eleitorais criadas em torno do Professor Cavaco Silva se assemelham às de 1979, ainda que com menor aversão ao caos revolucionário. De alguma maneira, aponta-se a esta base eleitoral uma herança dividida entre o Sá-carneirismo, inicialmente muito representado no Governo, e a linha política eanista, crescentemente órfã do PRD.
A acção política inicial do PSD após 85, que lhe garantiu duas maiorias absolutas, enveredou pela conclusão de alguns dos desígnios da AD que tinham maior aparência liberal, tais como as reformas fiscais, a reforma constitucional, as políticas de convergências no seio da União Europeia, a desregulação de alguns aspectos da vida social exigida pela integração. Num contexto económico favorável, estas acções foram vistas como uma “libertação” das dificuldades vividas antes e depois da Revolução.
Num ambiente político menos ideológico e menos inocente que o dos anos 70, os adversários políticos do PSD souberam desta vez explorar uma imagem autista e insensível, ou, se quisermos, “neoliberal” deste programa político. O PSD alimentou-a, em determinados momentos, sobretudo pela sua falta de evolução interna enquanto estrutura, não acompanhando a evolução do país. Esta estagnação institucional era exposta pelo facto de o PSD, ser, há já muitos anos, o verdadeiro partido de poder em Portugal.
Ainda assim, paradoxalmente, ou talvez explicando a subsistência do projecto cavaquista por dez anos, a verdadeira linha política seguida não foi liberal, nem sequer conservadora (como a de um partido democrata-cristão). Teve sempre elementos relativamente estatizadores e seguiu uma política social e assistencialista generosa, que procurava acompanhar o crescimento do país com desenvolvimento social.
Talvez por este contexto particularmente convidativo, por razões intuitivas da Teoria do Desenvolvimento, a esquerda soube reclamar ainda mais intensa acção social-democrata. Assim se criou espaço para o período de governação do PS após 1995 e para as consequências duradouras de mais vastas políticas públicas, sobretudo sociais e de investimento.
A partir daí, talvez pela cessação das expectativas liberais em torno do PSD, esgotaram-se os grandes projectos de governo no partido. As expectativas liberais, enquanto um fenómeno de forte promoção eleitoral do partido, poderão ter desaparecido pelo esquecimento da turbulência revolucionária, pela correcção dos maiores desequilíbrios e dos maiores incómodos que outrora se haviam esperado liberalizar.
O progresso das condições de vida fomentou entre a população portuguesa expectativas assistencialistas, de emprego e de crescimento do nível de vida, que, aliás, fomentaram o endividamento privado.
Esta evolução explica, no essencial, o dilema vivido desde então pelo PSD, ao nível ideológico, com especial destaque para o curto episódio de poder que se seguiu a 2002. Em 2002 o PSD esteve perto de perder uma eleição legislativa suscitada pela demissão do Primeiro-Ministro, que não escondeu a situação difícil em que deixava o país.
As dificuldades eleitorais do PSD deveram-se sobretudo à apresentação de um discurso ideológico pouco definido, com abundantes elementos conservadores e liberais. Estes últimos terão penalizado o partido, por não se alinharem com as expectativas dos eleitores.
Muito pior ainda seria a penalização eleitoral do partido por ter desenvolvido uma acção política diversa da de uma política económica expansionista, com forte cariz de esquerda, puramente social-democrata. A incapacidade, por parte da população, de digerir uma inflexão face aos anteriores anos de progresso no nível de vida, foi esmagadora, pelo que foram bem acolhidas as visões da esquerda, segundo a qual o governo PSD-CDS seria “neoliberal” e de uma grande subserviência aos critérios de mercado.
Esta inconsistência ideológica tem marcado as sucessivas lideranças do partido em oposição e as suas disputas eleitorais internas. Sendo certo que é completamente ignorada pelos eleitores a definição de liberalismo (ou a de conservadorismo), não menos certo é que a consistência da proposta política e o seu conteúdo conservador ou liberal (sem esses epítetos) são identificados.
Agora que as expectativas dos portugueses se alinham finalmente com as acções políticas mais urgentes, que envolverão austeridade e um pensamento de longo prazo, importa esclarecer esta discussão. Em que medida é a social-democracia personalista do século XXI liberal ou conservadora?
Conservadorismo ou liberalismo?
É compreensível a confusão que se verifica entre estes paradigmas, que, a serem seguidos em determinadas matérias, definem a especificidade da social-democracia do PSD. Hoje é claro que a social-democracia do PSD não é a pura social-democracia concebida pela I Internacional nos anos 10 e 20 do século passado.
Desde o final dos anos 90, o partido agrupa-se no Partido Popular Europeu, um agrupamento político conservador, contrariando a filiação que chegou a ter a um grupo liberal. Este período não foi particularmente caracterizado pelo liberalismo. Ter-se-á esta tratado de uma solução consensual, num partido ainda sensível à dicotomia esquerda-direita.
A segunda opção poderá também não ser vista como uma escolha ideológica consistente, podendo ter sido, sobretudo, influenciada pela presença de quase todos os partidos de governo não socialistas no PPE. Bem assim, o PSD promove diversos contactos institucionais com partidos de cariz democrata-cristão.
Para cumular esta indefinição no partido, as ideologias são semelhantes em diversos aspectos, permitindo a construção de argumentos falaciosos no espaço político. Desde logo, ambas tendem a promover a livre concorrência e a livre iniciativa, sendo favoráveis a uma economia de mercado com um nível relativamente baixo de intervenção pública e com reduzida carga fiscal.
Ambas se podem associar à aplicação política generalizada do paradigma económico neoclássico nos anos 80, por Reagan, Thatcher e Köhl, entre outros. Valorizam o indivíduo e desprezam visões totalitárias e determinísticas da sociedade, que a submetam a propósitos únicos e a desígnios que prevaleçam sobre as escolhas livres dos cidadãos. São variadas e abundantes as linhas programáticas do PSD que seguem estes princípios.
No entanto, é possível demarcar diferenças entre as ideologias, observando proposições políticas recentes e da actualidade. Quando o PSD se associa às IPSS é sobretudo conservador por entender que a acção totalitária do Estado, como monopolista assistencial, reprime as formas tradicionais de assistência social; quando promove a livre escolha dos indivíduos em matérias de saúde e educação é sobretudo liberal, por ver essa despesa social do Estado como um conjunto de subsídios que suprime algumas falhas de mercado, alinhando incentivos.
Um segundo exemplo: quando o PSD defende que algumas das funções do Estado devam ser desempenhadas por agentes privados é sobretudo conservador; é liberal quando defende a desregulação dos novos mercados a criar, de modo a alterar substantivamente o padrão de prestação desses serviços públicos.
Se o fizer, de acordo com princípios liberais, será com o argumento de que uma provisão sem carácter de serviço público regulado é mais eficiente e de que a correcção dos desequilíbrios sociais resultantes se pode efectuar com transferências sociais lump-sum, apenas quando for em si mesma ineficiente (pelos efeitos sobre as decisões do indivíduos) ou totalmente inaceitável – o liberalismo é hoje favorável à democracia e a uma certa igualdade de oportunidades.
Um terceiro: quando o Estado defende as estruturas sociais ancestrais da família, da comunidade local, da associação ou promove uma certa educação para os valores é sobretudo conservador; a ideologia liberal é axiologicamente indiferente aos mecanismos que decorram do livre funcionamento da sociedade e às escolhas de cada indivíduo, resistindo decisivamente a regular a sua vida privada e alargando o domínio da sua vida privada em detrimento do domínio público (logo político).
Muitos outros exemplos se poderiam encontrar, evidenciando contrastes entre propostas liberais e propostas conservadoras. Na última secção deste texto, importa reflectir sobre qual o rumo que se requer à social-democracia do PSD, na linha da sua fundação. É uma conclusão lógica, em que se procuram isolar os domínios em que o partido deve ponderar uma orientação liberal.
A caminho de uma evolução ideológica?
Não se pretende fornecer uma solução fechada para este problema. Trata-se de uma escolha política complexa que determinará o futuro do partido. Apenas se deixam, conclusivamente, algumas notas de análise que a devem suportar.
Desde logo, devemos compreender que os partidos conservadores são hoje determinantes na governação do mundo ocidental, e não apenas deste, enquanto os partidos liberais, onde existem, procuraram ocupar um lugar mediador no sistema político, entre os partidos conservadores e os partidos sociais-democratas.
Raramente conseguem ser uma opção governativa recorrente para os eleitores e os países da Europa de Leste são aqueles onde isso é mais comum, talvez por viverem um período político comparável ao que se seguiu à Revolução de 25 de Abril e que permitiu ao PSD beneficiar de fortes expectativas liberais. Mais comummente, perfilam-se como oposição descomprometida do poder ou até como parceiros ideais de coligação, à esquerda ou à direita (e.g. FDP, Alemanha).
Assim, é difícil defender que a social-democracia do PSD deva ser sobretudo uma social-democracia liberal. Mas sendo o PSD um partido intimamente original (o partido “mais português de Portugal”), não é de excluir que possam ser assumidos desígnios liberais que o país requeira de uma política social-democrata personalista no presente contexto.
A situação económica difícil do país é essencialmente devida a um profundo desalinhamento dos incentivos dos cidadãos portugueses. A pressão descendente sobre o preço dos bens transaccionáveis (desde que não muito inovados ou diferenciados), exercida pela concorrência internacional, juntamente com uma tendência de crescimento da produtividade deste sector ao longo de décadas, fez com que o seu preço relativo face aos bens não transaccionáveis declinasse continuamente.
Os incentivos para a mobilização dos recursos produtivos para este último sector foram evidentes, assim como a contaminação da alta dos preços dos bens não transaccionáveis para a subida dos salários reais, dado que este sector é mais intensivo em trabalho (é maioritariamente composto por certos serviços). A subida dos salários reforçou a procura agregada, com forte tendência do consumo e do investimento para se orientarem para o mesmo sector ou para bens importados, na ausência de produção transaccionável nacional.
Ora, as políticas públicas favoreceram-no, em lugar de o penalizarem, corrigindo esta falha de mercado que, a prazo, torna o país um grande devedor externo. Favoreceram-no ao constituir um largo sector público e um não menor conjunto de grandes empresas protegidas de ambientes concorrenciais, com os seus negócios virados para o sector não transaccionável.
Não menos importantemente, a política cambial (mesmo antes da adesão ao euro) e o sistema fiscal penalizaram o sistema exportador ao longo dos últimos vinte anos. A Administração (Central, Local, Regional) cresceu drasticamente, absorvendo recursos em actividades de cariz doméstico e insusceptíveis de exportação. O Estado promoveu profundos investimentos em infra-estrutura, protegendo a actividade não-transaccionável da construção. Poderíamos concluir esta análise sublinhando que a política energética não foi a adequada, nem o foi a de estímulo da inovação e a de educação.
Pode o liberalismo ser um antídoto a estes problemas? Pode este realinhar incentivos e promover as transformações sociais que se requerem? Em certa medida, o Estado pode devolver alguns destes sectores não transaccionáveis a uma forma totalmente não regulada.
Em muitas situações, sobretudo as que estão mais profundamente dentro do aparelho do Estado, pode não ser óptimo privatizar sem regular à maneira dos serviços públicos. Em outros casos, isto poderá ser desfavorável, ou pode até ser pretendido regular e proteger outros sectores, que criem, estrategicamente, valor para o país e que sofram hoje as consequências do desfavor passado do Estado.
Se é evidente que nos casos de desregulação total óptima se pede uma postura liberal, que persiga a livre concorrência com determinação, que será muito necessária, e que, nos demais casos, uma postura conservadora é importante, não se deve, por outro lado, esquecer que o Estado pode não ser capaz de fazer uma abertura controlada de sectores com algumas preocupações de carácter público e que corra o risco de repetir a actuação do passado, tentando ter uma política conservadora. Assim, pode ser que
Este argumento, apresentado em detalhe para a política económica, pode ser estendido às intervenções distorsivas do Estado na Educação, na Justiça, na política laboral. Remover a intervenção do Estado pode ser inaceitável num partido social-democrata. Restará saber até que ponto é possível transformar a intervenção do Estado sem a remover, nesses casos. Não existindo alternativa, podem soluções puramente liberais ser interessantes, como soluções second-best.
A conclusão final deste texto é a pois a de que poderão existir domínios das políticas públicas onde uma política liberal é óptima, mesmo sem ideologia premeditadamente liberal, pois, como em outros, contextos históricos, desfaz equilíbrios distorsivos. Para o PSD, além destes domínios, poderá colocar-se a opção ideológica de se ser liberal, em vez de conservador, quando assim se conseguir uma política mais eficaz e exequível.
No que não contrarie a matriz social-democrata, no que não desproteja os valores sociais essenciais de justiça, a busca da eficiência e descrença na superioridade do poder público no exercício de funções sociais podem vir a requerer opções liberais para o PSD, em vez das opções conservadoras que, tradicionalmente, conferem um acento personalista à sua social-democracia e que, deverão continuar a ser a principal especificidade do partido.